‘Tratado anacrônico’: entenda por que pilotos do Legacy que derrubaram avião da Gol não vão ser extraditados
Equipe da FAB resgata corpos de passageiros do voo 1907 da Gol na Floresta Amazônica, na reserva do Xingu Evaristo Sá (Foto:Reprodução/ AFP)
Tragédia deixou 154 mortos em 2006; Justiça brasileira decidiu que infrações dos americanos foram determinantes para acidente
Mesmo condenados pela Justiça por terem atingido e derrubado o avião da Gol, com 154 pessoas a bordo, em 2006, os pilotos americanos do jato Legacy não serão extraditados para cumprirem a pena no Brasil. Em maio deste ano, o governo dos Estados Unidos confirmou às autoridades brasileiras a decisão de não dar seguimento ao pedido de extradição por entender que os crimes não encontram amparo no Tratado Bilateral de Extradição entre os dois países.
Os americanos Joseph Lepore e Jan Paul Paladino conseguiram fazer um pouso de emergência e saíram ilesos do incidente. Anos depois, foram condenados por “atentado contra a segurança de transporte aéreo”. O advogado e mestre em direito internacional Victor Del Vecchio explica que este crime não está previsto entre os delitos regulados pelo tratado, que é de 1965, o que dificulta a aplicação do instrumento firmado entre Brasil e Estados Unidos.
Tragédia na Amazônia: Choque de jato Legacy e Boeing da Gol mata 154 pessoas
Além disso, o documento estabelece condições para a entrega recíproca dos indivíduos condenados.
— São listados os crimes que são regulados pelo instrumento e, ainda, consta a necessidade de que ambos os países reconheçam a conduta como crime nas suas legislações internas, e que haja previsão de pena de privação de liberdade com um ano ou mais de duração nas respectivas regulações leis nacionais — detalha o especialista. — O tratado data de 1965, e o rol de crimes indicados pode ser considerado desatualizado, sobretudo se levarmos em consideração que a regulação da aviação civil, por exemplo, já evoluiu muito nesses quase 60 anos.
Del Vecchio destaca que outras áreas em que o tratado pode ser aplicado também estão defasadas em relação às regulações que ocorreram em cada país nos últimos anos.
— Por exemplo, constam ainda crimes ou delitos contra as leis relativas ao tráfico, uso, produção ou manufatura de narcóticos ou cannabis, algo já descriminalizado em muitos estados americanos e, a depender da finalidade de uso, também no Brasil. Crimes com recorte de gênero também carregam regulações anacrônicas, já que em alguns casos só possibilitam a extradição quando praticados contra menina que, portanto, ainda não atingiu a idade adulta. O texto do instrumento deveria contemplar todas as mulheres, independentemente da idade — avalia o advogado.
Parentes de vítimas vivem a expectativa, agora, de que as autoridades brasileiras se articulem para que os pilotos cumpram a condenação, mesmo que branda, em solo americano.
O governo americano confirmou a recusa em 5 de maio, conforme informou ao GLOBO o Ministério da Justiça, por meio da Secretaria Nacional de Justiça. “Embaixada dos EUA transmitiu informação de que o Governo daquele país não deu seguimento ao pedido por entender que os crimes não encontram amparo no Tratado Bilateral de Extradição entre Brasil e EUA”, diz o comunicado.
O pedido de extradição foi feito em 13 de novembro de 2019, em nome da 1ª Vara Federal de Sinop, em Mato Grosso. O juiz responsável pelo caso já foi informado da decisão.
O voo 1907 da Gol fazia o trajeto Manaus-Brasília, tendo o Rio como destino final. Atingido pelo Legacy, caiu no Norte do Mato Grosso, a 692 km de Cuiabá, na reserva indígena do Xingu, já na divisa com o Pará. A Justiça Federal analisou que infrações cometidas por Lepore e Paladino foram determinantes para o acidente e pediu a prisão dos dois, condenados a três anos de prisão em regime aberto.
Não cabe recurso contra a condenação desde 2015. Na época, o Ministério da Justiça brasileiro emitiu uma intimação, mas o Departamento de Justiça americano afirmou não haver jurisdição para aplicar a sentença.
Relembre o caso
Na maior tragédia da aviação brasileira até então, no fim da tarde de 29 de setembro de 2006, uma sexta-feira, o jato da empresa Excel Air pilotado por Paladino e Lepore bateu na asa esquerda do Boeing 737-800.
Após quase 24 horas de buscas, os destroços da aeronave foram encontrados numa área de mata fechada da Floresta Amazônica. O Legacy (fabricado pela Embraer) teve parte de uma das asas e a cauda danificadas, mas conseguiu fazer um pouso de emergência num campo de provas da Força Aérea Brasileira (FAB) na região de Alta Floresta.
Entre as vítimas da tragédia, estavam um bebê de 11 meses que viajava com a mãe e outras quatro crianças, de até 12 anos, além de dois cientistas da Fundação Oswaldo Cruz, médicos, funcionários do Inmetro e um grupo de amigos capixabas que viajaram para pescar.
Noticiada por sites, jornais e TVs de todo o mundo, a tragédia ficou quase cinco anos sem qualquer punição. Somente em maio de 2011, os pilotos americanos foram condenados, pela Justiça de primeira instância, a quatro anos e quatro meses de detenção, por crime culposo (sem a intenção de matar) contra a segurança do transporte aéreo. O juiz federal Murilo Mendes, de Mato Grosso, decidiu que a pena deveria ser substituída por prestação de serviços comunitários em órgãos brasileiros nos Estados Unidos.
O Ministério Público Federal e a Associação dos Familiares e Amigos das Vítimas do Voo 1907 da Gol entraram com recurso contra a decisão. A pena foi reduzida para três anos, um mês e dez dias, em regime aberto, por decisão do Tribunal Regional Federal, em 15 de outubro de 2015.
O que causou o acidente
Segundo o magistrado, os pilotos foram negligentes ao não observarem o funcionamento do transponder (equipamento que transmite dados como velocidade, direção e altitude do avião, alertando sobre possível choque com objetos, e altera automaticamente a rota da aeronave) e do TCAS (dá informações ao piloto sobre outros aviões nas proximidades). Relatório da Aeronáutica concluiu que a hipótese mais provável foi o desligamento do transponder pelos pilotos, de forma não intencional. O relatório também constatou várias falhas dos controladores de voo na tragédia.
Em 2010, a Justiça Militar condenou o sargento e controlador de voo Jomarcelo Fernandes dos Santos a um ano e dois meses de detenção por causa do acidente com o voo 1907 da Gol e o Legacy. Ele respondeu por homicídio culposo – sem intenção de matar. Jomarcelo foi acusado de não informar sobre o desligamento do sinal anticolisão do Legacy e por não ter avisado o oficial que o substituiu no controle aéreo sobre a mudança de altitude do jato. Outros quatro controladores – João Batista da Silva, Felipe Santos Reis, Lucivando Tibúrcio de Alencar e Leandro José Santos de Barros – foram absolvidos.
Fonte: O Globo/ Publicado Por: Jornal Folha do Progresso em 21/07/2023/05:25:27
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