Escalpelamento ainda é ameaça a meninas e mulheres ribeirinhas

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Regina Formigosa de Lima produz perucas para vítimas de escalpamento (Fotos: Thiago Gomes / O Liberal)

De 2018 até o dia 19 de janeiro deste ano, 31 acidentes foram registrados no Estado

Nos rios amazônicos, onde pequenas embarcações são o principal meio de transporte e sobrevivência, acontece um acidente, o escalpelamento.

Suas principais vítimas são crianças e mulheres que têm o couro cabeludo arrancado bruscamente de forma parcial ou total pelo eixo do motor que atravessa o barco.

Além de arrancar violentamente o couro cabeludo e algumas áreas do rosto, o escalpelamento pode deixar cicatrizes e deformações físicas e psicológicas para o resto da vida das vítimas.

Desde 2018 até 19 de janeiro de 2021, já ocorreram 31 casos de escalpelamentos no Pará, com pessoas do sexo feminino, de 3 a 35 anos. Deles, em 2021, ocorreu somente um caso em Breves, com uma adolescente de 15 anos, em meados de janeiro.

Os dados são da Capitania dos Portos da Amazônia Oriental, da Marinha do Brasil, que atua também em Santarém, Oeste paraense. Segundo a Secretaria de Estado de Saúde Pública (Sespa), a maioria das acidentadas possuem renda familiar menor que um salário mínimo, que hoje vale R$ 1,1 mil.Grande parte das vítimas é de ribeirinhas, que têm no barco seu principal meio de transporte, e oriundas de municípios localizados entre o Arquipélago do Marajó, norte do Estado, e o Oeste do Pará.

Quando tinha 22 anos de idade, Regina Formigosa de Lima foi vítima na terra natal, no rio Atatá, no município de Muaná, na ilha do Marajó, quando voltava para casa.

“Saí para ir em outro lugar próximo da casa dos meus pais. Na volta para casa, por volta das 13h, eu deitei na parte de trás do pequeno barco, joguei meu cabelo e me apoiei. O motor estava em movimento e acho que devido ao tremor do motor meu cabelo varou em uma brecha da tábua e puxou de uma só vez.

Tive meu cabelo e couro cabeludo todo arrancado e perdi as sobrancelhas. Vim pra Belém e fiquei internada cinco meses. Até hoje já fiz duas cirurgias para reparo das sobrancelhas e sete cirurgias de enxerto na cabeça”, conta a vítima, 48 anos.
Ela lembra ainda que o mais difícil foi aceitar a perda dos cabelos, que eram longos, ondulados e castanhos.

“Naquela época a sociedade não falava no assunto. No rio em que eu morava havia uma senhora idosa que foi vítima e usava lenço na cabeça, mas nunca me interessei em saber como aquilo ocorreu.

Se eu tivesse ido atrás saber, talvez não seria mais uma vítima. Aí, aos 25 anos, passei a morar em Belém, onde me envolvi na ONG, participei de cursos e atividades que me ajudaram a superar mais o problema. Acho que superei 90%, porque sempre fica marcado”, afirma Regina Lima.

Municípios com registros de casos no EstadoDo total de 31 casos, somente em 2018 ocorreram sete. As vítimas eram crianças e adolescentes, de 7 a 16 anos. Dois casos foram em Curralinho. Além de Cametá, Melgaço, Muaná, São Sebastião da Boa Vista e Santarém, sendo uma ocorrência em cada.Em 2019, houve 13 vítimas, de 7 a 35 anos.

Em Porto de Moz e São Sebastião da Boa Vista ocorreram dois casos em cada. E também em Anajás, Bagre, Barcarena, Breves, Melgaço, Muaná, Portel, Santa Izabel do Pará, Cachoeira do Arari e Oriximiná, sendo um em cada município.Já em 2020, foram nove pessoas que sofreram escalpelamento no Estado, de 7 a 32 anos. Duas em Portel e um caso em cada município do Afuá, Breves, Chaves, Melgaço, Muaná, Oriximiná e Porto de Moz.

Ainda em 2020, dados da Sespa apontam um caso a mais, ocorrido com uma criança de três anos, em Ananindeua, na Região Metropolitana de Belém.

Regina Formigosa sofreu escalpelamento e hoje produz perucas para ela e às outras vítimas (Foto: Thiago Gomes / O Liberal)
Regina Formigosa sofreu escalpelamento e hoje produz perucas para ela e às outras vítimas (Foto: Thiago Gomes / O Liberal)

Rede de apoio ajuda a superar traumaHá uma década, muitas dessas vítimas já se organizaram e contam com ajuda de especialistas e umas das outras, para superar o trauma, melhorar a autoestima e vencer ainda outros problemas, como o preconceito social, que dificulta também a inserção no mercado de trabalho.

“A dificuldade maior é o preconceito que ainda existe acompanhado da dificuldade de conseguir trabalho. Pelo fato de sofrerem o acidente, elas ficam com sequelas.

A maioria delas que vão em busca de trabalho, são barradas pela desculpa da empresa de que sempre elas vão ter que estar todo tempo de licença, que não poderão trabalhar por conta das sequelas, enfim. Infelizmente, isso ainda acontece muito”, afirma Darci Lima, presidente da Organização dos Ribeirinhos Vítimas de Acidentes de Motor (Orvam).

A presidente da Organização afirma ainda que muitas delas vão em busca do Benefício de Prestação Continuada (BPC), mas nem todas recebem. “Porque o INSS não tem o escalpelamento como uma deficiência.

Mas só como um acidente. Porém, existe a problemática social de sofrerem preconceitos e de conseguirem emprego. A maioria delas fazem parte do grupo de risco pelas sequelas e são hipertensas”, enfatiza Lima.

A Orvam é uma Organização Não-Governamental (ONG), que existe há dez anos e trabalha com as mulheres vítimas no desenvolvimento de ações que ajudam na autoestima, no empoderamento e combate ao preconceito. A Organização conta hoje com 160 pessoas cadastradas, de 8 a 56 anos, de vários municípios do Pará.

A ONG realiza também campanha para doações de cabelos para confeccionar perucas às vítimas tendo alguns apoiadores. As perucas são confeccionadas por Regina Formigosa de Lima, que produz cerca de oito ao mês com cabelos naturais ou não e de diversas cores e comprimentos.“Eu faço e uso perucas. O cabelo é essencial e faz toda a diferença até para a saúde. Como não posso ter mais, a peruca é algo que me faz sentir melhor, mais bonita.

Minha filha tem o cabelo parecido como o que eu tinha. Estou guardando o cabelo dela para montar uma peruca pra mim, para me sentir um pouco mais como antes”, relata Regina.

Donos de barcos devem se conscientizarNa visão de Darci Lima, os casos ainda ocorrem no Pará, principalmente, pela falta de conscientização dos responsáveis pelas embarcações. “A Marinha do Brasil tem projeto de cobertura de embarcação, a carenagem, e ajuda na prevenção ao doar o produto, mas tem que ter a conscientização dos proprietários das embarcações, dos barcos pequenos.

Sabemos que as embarcações deles servem não somente para o trabalho, mas também para as esposas e filhas irem à igreja, à escola e outros lugares”.Nessas circunstâncias, ela explica como o escalpelamento ocorre. “Sabemos que os barcos são curtos e entra água, e a cultura da maioria das mulheres ribeirinhas é ter cabelo longo.

Devido entrar água no barco, elas acabam se abaixando para retirá-la, e, como o vento é forte, o cabelo amarrado acaba soltando e acontece o acidente. É uma agressão interna e externa à mulher, porque não vai mais crescer cabelo e elas ficam sequeladas para o resto da vida”, lamenta a presidente.

Na outra ponta, a presidente da ONG explica que existe também a falta de segurança às embarcações, que sofrem ataques de “piratas” nos rios – o que leva alguns barqueiros a não instalarem a carenagem, mesmo colocando em risco a vida das mulheres da família.“Já os barqueiros falam que a problemática que eles vivem envolve os piratas dos rios.

Quando eles terminam de utilizar a embarcação, eles retiram o eixo e o motor e guardam, porque à noite, quando os piratas passam eles levam. Se tiver o motor e o eixo, eles roubam e deixam só o barco. Se tiver com a carenagem, eles levam o barco com tudo e eles ficam no prejuízo.

Eles não têm lugar seguro para colocar as embarcações com segurança. Era importante o município ou o estado dar um suporte para eles terem onde guardar a embarcação com segurança”, pontua Lima.

Dessa forma, “alguns barqueiros acabam achando que é melhor não colocar a cobertura e pensam que o escalpelamento nunca vai acontecer. Mas só se conscientizam quando ocorre o acidente com a mãe, esposa e filha.

Contudo, o mais importante é mesmo a conscientização dos barqueiros e, infelizmente, não temos suporte para isso”, reitera a presidente da Orvam.Segup afirma que investe em ações de prevenção e ostensividade para diminuir o número de crimes nos rios do Pará

A Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Pará (Segup) informa que “vem investindo fortemente na aquisição de viaturas aquáticas, a fim de fortalecer, ainda mais, as ações de prevenção e ostensividade nos rios do Pará”.

A Segup ressalta que dobrará a sua capacidade operacional com 60 embarcações que estarão aptas para combater os crimes nas mais diversas regiões do Estado, sendo 15 lanchas novas e 43 revitalizadas com novos motores, após processo de renovação total.

Além de duas novas lanchas blindadas com capacidade de navegação na zona 2 (baía e costa). A primeira lancha blindada do Pará foi entregue no final do ano passado.

Ainda segundo a Segup, operações integradas como a Netuno I e II, realizadas na região do Marajó e Baixo Tocantins, em 2020 e 2021, respectivamente, desarticularam organizações criminosas, já demonstrando redução das ocorrências. Ministra diz que quer erradicar o problemaRecentemente, o Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro) e o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) assinaram acordo para desenvolver, em parceria com outras instituições, projetos para protótipos de equipamentos de proteção do motor de embarcações fluviais.

O objetivo é ter dispositivos mais seguros que mitiguem um problema sério na região Norte do país: o escalpelamento de meninas e mulheres das comunidades ribeirinhas.O Inmetro trabalhará junto a instituições como Marinha do Brasil e Universidade Federal do Pará para buscar uma solução para o problema.

“O Inmetro é uma caixa de ferramentas para ajudar o setor produtivo, o governo, a sociedade, as pessoas. Nosso papel é pegar toda a capacidade tecnológica que temos e colocar à disposição para resolver um problema”, afirma o presidente do Instituto, Marcos Heleno Guerson de Oliveira Junior.

A ministra Damares Alves reforçou a importância da união de forças para erradicar o problema. “Eu quero erradicar o escalpelamento no Brasil. Essa é uma meta ousada, mas possível. Não posso admitir uma situação dessa continua dizimando mulheres e meninas o tempo todo no Brasil”, afirma.A parceria prevê estudos e ações para mapeamento das embarcações sem proteção e para o desenvolvimento de protótipos que sejam atrativos à população ribeirinha.

Também serão desenvolvidas campanhas de conscientização para prevenção do escalpelamento por embarcações.ServiçosPara ter acesso gratuito ao projeto de cobertura do motor da embarcação, a carenagem, da Marinha do Brasil, basta ir à Capitania dos Portos da Amazônia Oriental, na rua Gaspar Viana, 575, no bairro do Reduto, em Belém.

A Orvam está localizada na avenida João Paulo II, 134, entre as ruas Mariana e Coração de Jesus, no bairro Castanheira, em Belém. Na pandemia funciona segunda, quarta e sexta-feira, das 8h às 17h, e sábado, das 8h às 12h.

Por:Cleide Magalhães

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