No interior do Amazonas, pandemia zera estoque de oxigênio e expõe indígenas a trabalhadores infectados

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Image caption Placa instalada na comunidade Boa Esperança, na Terra Indígena Balaio; hábitos culturais e dificuldades no acesso à assistência em saúde tornam os indígenas especialmente vulneráveis à covid-19

Placa diz: ‘devido ao coronavírus a comunidade Boa Esperança não está recebendo visitas de amigos nem de parentes’

Profissionais de saúde com covid-19 circulando em aldeias indígenas, médicos fazendo vaquinha para comprar oxigênio para pacientes intubados, comunidades inteiras apresentando sintomas da doença.

As cenas, descritas à BBC News Brasil por médicos e enfermeiros que atuam no município de São Gabriel da Cachoeira, ilustram a gravidade da pandemia no interior do Amazonas, onde ficam 13 das 20 cidades brasileiras com a maior proporção de moradores infectados.

Sem qualquer caso de covid-19 até 26 de abril, São Gabriel da Cachoeira já é a 15ª da lista, com 999 registros por 100 mil habitantes. Desde então, morreram, ali, ao menos 15 pessoas de covid-19.

Líderes comunitários afirmam que o número de mortes é provavelmente maior, pois nem todos os doentes que apresentaram sintomas foram examinados antes do óbito. Foi o caso, por exemplo, do artista plástico Feliciano Lana, de 83 anos, que morreu na comunidade São Francisco em 12 de maio.

O avanço da doença pelo município, localizado na fronteira do Brasil com a Colômbia e a Venezuela, expõe ainda a chegada da epidemia a uma das etapas mais temidas por especialistas: o espalhamento do vírus entre comunidades indígenas.

Segundo o Censo de 2010, 76% dos moradores de São Gabriel são indígenas — a maior proporção entre todos os municípios do país.

Mais da metade dos 45 mil habitantes de São Gabriel da Cachoeira vive fora da cidade, em comunidades nas Terras Indígenas Alto Rio Negro, Balaio e Yanomami. Só se chega de barco ou avião ao município, que tem área equivalente à de Portugal.

Indígenas são considerados especialmente vulneráveis à covid-19 por conta de hábitos que tendem a facilitar os contágios, como o compartilhamento de objetos, e da frágil assistência médica em seus territórios. Mesmo antes da epidemia, doenças respiratórias já eram a principal causa de morte entre os grupos.

Segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), 110 indígenas já morreram de covid-19 no país, e houve casos registrados em 53 etnias.

Diferentemente do Ministério da Saúde, que em suas estatísticas sobre indígenas considera apenas os grupos que moram em aldeias, a organização também abarca os que vivem em cidades.
Comunidades inteiras infectadas
Placa diz: ‘Proibido encostar na comunidade’

amazonia2Direito de imagem DSEI Alto do Rio Negro
Image caption Placa instalada na comunidade de Taraucuá, no rio Uaupés, Terra Indígena Alto Rio Negro

Os registros de covid-19 em São Gabriel da Cachoeira se concentram na zona urbana, mas equipes de saúde têm atendido cada vez mais casos nas aldeias.

Segundo os profissionais entrevistados, já houve ocasiões em que praticamente todos os membros da comunidade — dos mais jovens aos mais velhos — apresentavam sintomas da doença.

Porém, como só há 200 testes para todas as 733 comunidades da região, apenas alguns pacientes têm feito o exame.

Segundo a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde, já houve 16 confirmações da doença em aldeias no Distrito Sanitário Especial Indígena do Alto Rio Negro — região administrativa que engloba a maioria das aldeias no município de São Gabriel da Cachoeira —, das quais duas resultaram em morte. Em todo o país, diz a Sesai, houve 606 casos e 31 mortes de indígenas que vivem em aldeias.

Seis pessoas que acompanham o combate à doença em São Gabriel da Cachoeira — e que pediram para não ter os nomes divulgados por medo de represálias — afirmam que a falta de testes fez com que profissionais de saúde que não sabiam estar com covid-19 tenham viajado a aldeias.

Acredita-se que parte do grupo tenha sido contaminado durante uma longa viagem de barco que levou os profissionais até comunidades na região dos rios Uaupés e Tiquié, na fronteira do Brasil com a Colômbia.

Conduzida pelo barqueiro Jorge Gabriel da Silva, a embarcação a serviço do Ministério da Saúde partiu da sede de São Gabriel da Cachoeira no fim de abril com cerca de 30 profissionais, a serem distribuídos entre unidades básicas de saúde (polos-base) da região.

A viagem durou cerca de uma semana. Na volta a São Gabriel da Cachoeira, o barqueiro apresentou sintomas de covid-19 e foi internado. O exame deu positivo e, em 6 de maio, ele morreu.

Dias depois da viagem, profissionais que haviam tido contato com Silva também começaram a adoecer.

O temor de que médicos e enfermeiros infectados na viagem estivessem expondo indígenas à doença fez com que a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) escrevesse uma carta ao principal responsável do Ministério da Saúde na região — o coordenador do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) do Alto Rio Negro, Franklin de Souza Quirino.

No documento, enviado em 5 de maio, a organização questionou quais medidas vinham sendo adotadas em relação a profissionais com sintomas e se eles estavam sendo testados antes de entrar nas aldeias.

A BBC News Brasil fez as mesmas perguntas a Quirino e à Secretaria Especial de Saúde Indígena em Brasília, além de questionar quantos profissionais e indígenas tiveram contato com o barqueiro e se eles haviam sido isolados.

Não houve resposta, e a secretaria se limitou a mencionar uma expedição recente à região para a entrega de materiais hospitalares (leia mais abaixo).

Médicos e enfermeiros ouvidos pela BBC News Brasil afirmaram que, no polo-base de Pari-Cachoeira, distrito onde vivem cerca de 4,2 mil indígenas, um profissional de saúde que teve contato com o barqueiro testou positivo para covid-19, e todos os outros membros da equipe apresentaram sintomas.

Mesmo assim, o grupo passou cerca de três semanas no polo-base e só foi substituído na última quarta-feira (20/5), quando estava programada a troca periódica da equipe.

Nos últimos dias, foi registrado o primeiro caso de covid-19 entre indígenas do distrito.

Segundo os profissionais entrevistados, há uma orientação para que eles se isolem nos polos-base e evitem contato com pacientes se apresentarem sintomas.

É possível, porém, que pessoas transmitam a covid-19 antes de apresentar sinais, e algumas chegam a transmitir a doença sem jamais manifestar sintomas.

Segundo os profissionais entrevistados, um outro profissional de saúde contatado pelo barqueiro testou positivo em Cucuí, na fronteira com a Venezuela. No mesmo local, um paciente em estado grave com suspeita de covid-19 foi recentemente resgatado de helicóptero.
Dois homens em volta de caminhão com cestas básicas

amazonia3Direito de imagem FOIRN
Image caption Cestas básicas coletadas pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro para distribuição nas comunidades

O possível rastro de infecções a partir do barqueiro revela uma particularidade da pandemia na Amazônia, onde rios são essenciais para o transporte.

Nos deslocamentos de barco na região, passageiros podem passar dias em contato intenso com pessoas infectadas, o que potencializa a transmissão do vírus.

Praticamente todos os municípios amazonenses com alto índice de contágio ficam em rotas fluviais importantes e estão ligados a Manaus, uma das cidades mais impactadas pela covid-19 no Brasil.
Obras durante a pandemia

Em outra frente de contágio em São Gabriel da Cachoeira, um operário a serviço da prefeitura é apontado como o responsável por levar a covid-19 às comunidades Inambu e Nazaré, na Terra Indígena Yanomami.

Junto a outros dois colegas, ele havia sido designado pela prefeitura para reformar as escolas das duas comunidades em plena pandemia.

O trabalhador testou positivo há cerca de 15 dias e não interrompeu os serviços. Desde então, vários moradores das aldeias apresentaram sintomas da doença, e três casos foram confirmados.

Dias antes da viagem, o trabalhador teve contato com o prefeito de São Gabriel da Cachoeira, Clóvis Curubão — que, posteriormente, também descobriu estar infectado.

A BBC News Brasil enviou uma mensagem ao secretário de Saúde de São Gabriel da Cachoeira, Fabio Sampaio, questionando por que as obras nas aldeias foram mantidas e por que o funcionário não foi evacuado após a confirmação do exame.

Ele não respondeu.

O município está em lockdown desde 8 de maio, e o trânsito entre a cidade e as aldeias foi restrito a serviços essenciais ou emergências.
Testes falhos

Em outra região do território yanomami, uma técnica de enfermagem que nos últimos dias aplicou vacinas da gripe em cerca de 135 indígenas relatou falta de ar aos superiores e deve ser testada nos próximos dias.

Os profissionais de saúde entrevistados disseram ter cobrado a Sesai para que todos os membros das equipes — inclusive barqueiros e tripulantes — sejam testados antes de qualquer viagem para as aldeias.

Eles defendem a realização de testes do tipo PT-PCR, menos sujeitos a erros, mas que implicariam o envio das amostras a Manaus, pois não há laboratórios em São Gabriel da Cachoeira.

Por ora, só há no município os chamados testes rápidos, que apresentam alto índice de falhas.
Falta de oxigênio
Militares descarregam tubos de oxigênio enviados para repor estoque do hospital em São Gabriel da Cachoeira

amazonia4Direito de imagem Exercito Brasileiro

Image caption O Exército repôs estoques de oxigênio, mas não respondeu que medidas seriam tomadas para evitar novas faltas

A explosão de casos em São Gabriel da Cachoeira lotou o único hospital da cidade, gerido pelo Exército.

Há na unidade 15 respiradores mecânicos — todos ocupados atualmente — e nenhuma Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Pacientes intubados são transferidos de avião assim que surgem vagas em Manaus.

O funcionamento dos respiradores também depende de cilindros de oxigênio vindos da capital, pois a usina de oxigênio da cidade está quebrada e só consegue abastecer dois aparelhos.

Em 9 de maio, o estoque de cilindros se esgotou, e funcionários do hospital tiveram de improvisar para impedir uma tragédia.

Segundo os profissionais entrevistados, foi feita uma vaquinha para comprar cilindros de oxigênio industrial em oficinas da cidade.

Embora o uso desse tipo de oxigênio seja contraindicado para fins hospitalares, pois não é certificado por órgãos sanitários, ele é compatível com os respiradores e tem a mesma composição que o oxigênio medicinal.

Os trabalhadores entrevistados disseram que dois cilindros industriais foram usados até a chegada de um novo carregamento de oxigênio hospitalar, garantindo a sobrevivência dos pacientes no período.

A BBC News Brasil pediu detalhes sobre o episódio ao Exército e ao tenente-coronel Carlos Eduardo Bragança — responsável pela Comunicação Social do órgão em São Gabriel da Cachoeira —, mas não obteve resposta.

Tampouco foram respondidas perguntas sobre providências para impedir novas faltas de oxigênioe o conserto da usina do hospital.

O Ministério da Saúde tampouco se manifestou sobre problemas específicos relatados pelos profissionais de saúde à BBC News Brasil, como a falta de testes no município e indígenas expostos a trabalhadores infectados.

Em vez disso, o órgão enviou uma nota na qual detalhou uma expedição do governo federal a São Gabriel da Cachoeira na semana passada, quando foram entregues sete aspiradores portáteis, sete desfibriladores, 15 oxímetros e oito respiradores.

Segundo o ministério, o município também recebeu frascos de álcool gel e equipamentos de proteção individual (EPIs), como aventais, gorros, máscaras e óculos para cirurgias.

A entrega dos itens foi feita pessoalmente pelo chefe da Secretaria Especial de Saúde Indígena, Robson Santos da Silva, que se deslocou até a cidade em um avião da Força Aérea Brasileira em 17 de maio.

Entre os membros da comitiva estavam 11 profissionais de saúde, que reforçarão temporariamente o hospital em São Gabriel da Cachoeira, além de 13 profissionais de comunicação — cinco assessores de imprensa de órgãos federais e oito membros de veículos jornalísticos convidados para cobrir a visita.

Por:João Fellet – @joaofellet Da BBC News Brasil em Brasília

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